quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Ervas ou Shitake?

Foto: Rogério de Moraes


Respirei fundo, foi a melhor sensação que me ocorreu. Não me lembro de antes ter sentido um prazer tão imenso.

Aconteceu semana passada. Levantei, fui direto para o banheiro, me troquei. Indo pra labuta já planejava o jantar. Pensei: Farei risoto, todos adoram risoto! Depois pensei nas férias que estavam por vir, faltavam 10 dias.

Cheguei no trabalho e sentei. Desejava um bom-dia com um sorriso amarelo e não conseguia convencer a ninguém. Comecei a digitar. Enquanto meus dedos passeavam pelo teclado eu pensava em qual risoto eu faria: ervas finas ou shitake?

O dia passou arrastado. Ligações, relatórios... O relógio atrasava dois minutos para cada um que andava. 18:00h!

Voltei pro carro. Dei a partida e senti alguém batendo no vidro.

- DONA, ABRE A PORTA DO PASSAGEIRO. NÃO GRITA SE NÃO EU TE MATO!

Desnorteei, senti meus pés tremendo, e até pensei em rezar. Tudo passa muito rápido nessa hora.

- Vai Dona! Vai!

- Ok!

Foi a única coisa que eu falei. Queria parecer forte, mas chorava. Ele entrou no carro, bateu a porta e colocou o revólver na minha cara.

- Vamo dá um passeio! Cê vai fazer caminho que eu ti falá. Si buziná pra pulicia eu te mato, si dé algum sinal eu ti mato, si você passá num farol vermelho eu ti mato. E pára de chorá que eu num to afim de vê vagabunda chorando.

Minha mão sacolejava no volante. Ele colocou a mão sobre o banco e gritou para eu dirigir.

A rua onde eu parava o carro ficava duas travessas da rua da minha empresa. Era sempre escuro, mas eu não pagava estacionamento. Meu marido ainda falava:

- Por que você não pára no estacionamento? É mais seguro?

- Pagar 12 reais por dia? Isso, sim, é um assalto. - E eu retrucava.

Eu ficava lembrando disso, enquanto o filho da puta do meu lado ficava balbuciando.

- Eu tenho qui chegá na quebrada, tia! Vai logo! Si eu não chegá eu morro, mais você morre comigo.

Nesse momento ele deslizou a arma no meu cabelo e foi até o decote da minha blusa.

- Quero só vê a cara do Macaba, quando ele vê qui você tá no carro. Acho qui ele vai querer me pagá um extra, faz tempo que ele num vê muié. A dona é bunita, sabia?

Entrei em pânico, e troquei o pé. Acelerei mais do que freei. Um ônibus cruzava a minha frente quando o acelerador estava no máximo. Ao meu lado eu via um rosto de terror, de alguém que podia ver um filme diante dos seus olhos.

Lembro das sirenes, lembro das viaturas, e lembro também do bandido estar sem cinto de segurança quando eu bati no ônibus.

Fiquei em coma, por um dia. Politraumatismo. Quando acordei, a primeira coisa que lembrei foi do risoto. O olhar ficou perdido por algum tempo, por alguns dias, e hoje respirei fundo!

domingo, 18 de janeiro de 2009

De Boa


Foto: Ronaldo Júnior

Aí eu penso, que merda é essa? Puta sol! Eu aqui vendo a brisa passar na escadaria do municipal. Bel prazer, falou outro dia o Mário que vende relógio ali no viaduto. Que eu fico aqui no bel prazer. Sei lá que porra é isso. To aqui na minha, curtindo um sol. Vagabundo, já falaram. Mas ta cheio de vagabundo ai atrás na sombra. Tudo enrustido, de calça e tênis, fingindo que ta procurando emprego. To de boa. Levei um ontem na fita e já mocozei a parada. Hoje to de férias. Depois vou ali comer uns grego e toma dois suco. Mas não vou no Alemão, não, que ele é folgado, fica olhando torto, diz que os cliente não gosta. Pau no cu dele, pensa que aquela merda é restaurante francês. Vou mais embaixo, no Lima. De lá já passo no mercadão e filo uma sobremesa nos caminhão. To de férias, mas essa praia não tem mar. Num vo paga pra turista de cair no chafariz. Deixa os moleque lá. Fico na minha, dou um role. De noite tomo um banho lá no albergue da juventude. Boto uns panos, desmocozo um, e colo nas putas ali do vale. Tipo playboy, pagando de puta no boteco. Depois arrepio um quarto ali na boca de porco, boto as pulga pra correr da cama. Vixe, vo vira os zóio em cima da puta. Uma horinha ta firmeza. To de boa. A fita rendeu. Se continuar assim fico rico, compro essa porra aí atrás e abro um puteiro aí dentro. Só madame e doutor vai entrar. Ou seja, não vai mudar muita coisa. Mas foda-se, hoje to de férias, deixa eu curtir meu sol. To de boa.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Luz e Sombra

Foto: Rogério de Moraes


O Sol Solene Sucumbi as Sombras
São Somente as Sobras de Suor e Sadismo
Cidade Caída
Cidade Cuja Crueldade Castiga os Cidadãos

Não só nas sombras escondem-se os Homens,
Não só na luz apresentam-se os Anjos.
Vive-se na aflição e no prazer
Morre-se por tão pouco a oferecer

Cidade Cuspida
Cidade pedida entre os calhordas e os omissos
Nada de Compromisso
Esse é o meu

E me escondo por caminhos retos
Por onde haja teto que me afaste da luz
No puro vazio cresce
No muro erguido resplandece

Segue a Cidade Suja
Imunda e inunda o mundo de caos
Engafinhando-se entre luz e sombra
Entre pó, pró e contra.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

A Fenda


Foto: Ronaldo Júnior

Espreitou pela fenda. Era um alto portão de ferro, sólido. No meio uma fenda. O portão era o elo único na solidez de uma muralha que se perdia rua acima, rua abaixo. Uniforme muralha que guardava por trás de si um mundo mitológico, imaginário e surpreendente que só podia existir na imaginação, no sonho e no improvável. O que a muralha guardava por trás de si era o mistério de um Olimpo habitado pelos que habitam os Olimpos do mundo: mortais que para além de outros mortais menos “olímpicos” transitam entre nós com a pompa dos deuses e as vestes dos homens. Aquele portão era a passagem para o outro lado, ainda que ele, ao espreitar a fenda, não sabia bem o que seria o lado de lá.

Mas conhecia bem o outro lado. O lado de fora do muro. O seu lado. E o que conhecia naquelas ruas era seus pés que não tinham asas, mas calos e bolhas e uma grossura áspera na sola de quem não tem jardins para caminhar. Conhecia o desafio diário de voltar para casa com algum dinheiro, paga pelos muito mais que 12 trabalhos que tinha na rua, onde os leões assassinos e aterrorizantes não se venciam facilmente. Conhecia os cruzamentos e os carros caros que ali paravam vedados por vidros escuros, herméticos para os olhos dos que como ele não conheciam o outro lado do muro. Conhecia sua morada sem muros, sem portões, sem fendas, aberta inteiramente ao mundo pelas muitas frestas na madeira e cerrada por uma tramela barata.

Contudo, ali, espreitando pela fenda, vivia a epifania de um vislumbre do outro lado, um lado que ele imaginava como nas novelas da TV, um lado que vivia na sua imaginação de capas de revistas, nas fotos de página inteira da curiosidade medíocre dos que vêem caras nas bancas de jornais; e o vazio estéril da fascinação por um mundo tão estéril quanto seu próprio vazio em caras de capas de revistas.

Mas não compreendia nada disso, e a fenda que se abria no portão era a mesma fenda que se fechava em seu cotidiano. Apenas experimentava sua descoberta imediata e sentia o fascínio pelo mistério revelado por detrás do portão, com um novo mistério adjacente para o que podia ser além das escadas e arbustos que a fenda revelava.

Depois sentiu cansaço e fome. Afastou-se da fenda e partiu rua abaixo, olhando para o alto do muro que o acompanhava como um vigilante atento e hostil. Foi-se, faminto a cansado, mas feliz pela sorte de ter pescado com os olhos curiosos um pedaço de um mundo que não conhecia, mas que tanto sonhara. Um mundo que só existia do outro lado daqueles muros, daquela portão, daquela fenda. Uma fenda que se abria para o inalcançável, uma fenda que se abria para o que a vida, desde sempre, lhe fechara.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Fios da Cidade


Foto: Ronaldo Júnior

A cidade cruza-se, descruza-se, emaranha-se, veste seu brilho negro de embaraço. São caminhos, rotas, meios, fugas, soluções do caos, da ausência de solução, da ausência do poder, da ausência de ordem, da vigência da não-vigilância, do acaso, da sorte alheia, do descaso.

A cidade é seu emaranhado próprio, sua própria lei, sua própria solução. Dissolve-se no improviso de seus cidadãos, de suas necessidades urgentes, na busca auto-indulgente de meios pelos meios tortos. É torta na sua essência a cidade, constrói-se diariamente no descontrole, no crescimento, na fuga necessária de uma ordem sem progresso (falsa) e de um progresso sem ordem (inútil), na urgência de um fio condutor entre a realidade ideal e a realidade real.

A cidade é um cruzamento de fios orgânicos, de vidas em correntes e colisões, em gambiarras sociais, em esdrúxulas combinações. A cidade é um fluxo corrente ininterrupto rumo ao desconhecido, rumo ao possível colapso, a um possível, esperado e inevitável curto-circuito. A cidade é um poço inflamável, a espera de uma só faísca.

Sob o Sol

Foto: Rogério de Moraes

Sob o sol, logo procurou a sobra da árvore para se esconder. Aquele calor fazia a pele suar e isso a incomodava. Já esperara sua carona centenas de vezes naquele local, mas nunca notou como eram confortáveis aquelas sombras. Ficou ali prestando atenção no vento e na vida. Sentou no meio fio e relaxou.

Lembrou de um tempo em que ela ainda sorria e deixava as pequenas coisa da vida lhe tocar. Lembrou de uma amiga de sua falecida mãe que dizia:

- Seja sempre essa criança que você é.

Um estalo lhe veio à mente. Caindo em si, notou que o bom da vida está exatamente em ressalvar coisas tão corriqueiras que os olhos ligeiros do dia-a-dia impedem de ver, olhos que percorrem o fim do caminho sem notar o meio, e quem dirá, o início, olhos que famintos pela ânsia de ser e estar atropelam o bom senso e marginalizam a vida de tal forma que nada mais pode ser feito, além de esperar por seu fim.

Gemeu baixinho, um choro frouxo, pois se dera conta que estava levando seu rebento para o mesmo caminho. O filho, ainda novo, já era só atribuições e não tinha tempo de buscar dentro dele o verdadeiro eu.

Aquilo que ela mais amava se tornara um soldado do tempo, sem pensar por si, simplesmente acompanhando aquilo que a vida lhe trazia e lhe tirava.

Quem determina minha vida é o tempo? Perguntou-se inúmeras vezes até que chegou a conclusão mais acertada de sua vida. Manter-se ali, embaixo daquela árvore e ouvir o vento soprar. Nada além disso.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Depois da Chuva

Foto: Ronaldo Júnior

Caminhava triste depois da chuva quando aconteceu. Vinha por algumas quadras, cabisbaixo, ruminando suas aflições vazias e suas dores brandas. Pisava indiferente nas poças d’água, ouvindo o chapinhar melancólico de sua caminhada solitária, enquanto a tarde caía por trás de seus sonhos. Seguia sem rumo certo, como que procurando se perder, mas também com o medo de se encontrar. Quando deu por si, tinha chego à rua velha da estação e não sabia como fora dar ali. Foi então que o tempo parou.

Como que por encanto, num jogo de espelhos intrínsecos, céu e chão tornaram-se um só. E como que um portal mágico para o infinito das horas, o relógio da torre, que alto no céu sempre esteve, estava agora no chão aberto e seus ponteiros eram mudos. Parado ante uma imagem do impossível, percebeu que todos ao redor também pararam. Tudo era estanque. O ar, as pessoas, a luz, o céu, o relógio e o tempo. Nada se movia. Nem mesmo ele, que a tudo via com assombrada nitidez, mas que nada podia fazer para mudar o curso imóvel das coisas. Chegou a pensar que tivesse morrido e aquilo era a morte, uma infinita exatidão de cores e imobilidade absoluta, para o além das eras, onde o tempo não existia. Não sentiu-se triste, então. Pela primeira vez em muitos anos, talvez pela primeira vez em sua vida, sentiu-se em paz. E quis que aquilo durasse mais que o tempo que já não durava, uma vez que o tempo não mais existia.

Contudo, o tempo é atroz e tinhoso, e acima de tudo inaprisionável. E consoante a vontade de que ele fosse eterno na sua imobilidade, ele era por natureza eterno em seu movimento. Percebeu, um pouco antes do fim de sua paz e de sua viagem no instante, que de fato nada nunca estivera parado. Nem o tempo, nem o relógio, nem a vida. Viu-se amargo na certeza de que vivera um breve retrocesso em si mesmo, e percebeu que dali nada mais seria diferente, ou igual. Sentiu-se por fim aliviado, quando se deu conta de que a tristeza e a solidão eram seu meio e seu fim, a razão e o objeto de sua consciência. Seu eu mais profundo, e também inaprisionável.

Até que o encanto se quebrou, o tempo se moveu e o relógio assomou suas horas. E ele seguiu seu rumo incerto, com sua bela tristeza e deliciosa solidão.