sábado, 14 de fevereiro de 2009

Tangente


Foto: Ronaldo Júnior

Tange-me a avenida, pulsante, asfalto, faixas, sons. Sou todo nela, integro-me, entrego-me na sua insana dissidência, desses sentidos sem rumos, ou de rumos sem sentido. Amparam-me às suas margens guardiões de concreto e vidro, edificações da realidade, cínicos, vis e necessários. Oriento-me pelo fluxo contínuo, pela fé fescenina de meu âmago incerto. Sigo seu totem obsceno, enclave simbólico, ângulo reto, mirante dos mortos. A avenida é a cidade, seu monumento em respeito aos heróis tombados na derrota, cuja vitória é a lembrança perene de um obelisco centrado no destino da avenida. Muitos que passam não veem, muitos que viram não passam.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Ervas ou Shitake?

Foto: Rogério de Moraes


Respirei fundo, foi a melhor sensação que me ocorreu. Não me lembro de antes ter sentido um prazer tão imenso.

Aconteceu semana passada. Levantei, fui direto para o banheiro, me troquei. Indo pra labuta já planejava o jantar. Pensei: Farei risoto, todos adoram risoto! Depois pensei nas férias que estavam por vir, faltavam 10 dias.

Cheguei no trabalho e sentei. Desejava um bom-dia com um sorriso amarelo e não conseguia convencer a ninguém. Comecei a digitar. Enquanto meus dedos passeavam pelo teclado eu pensava em qual risoto eu faria: ervas finas ou shitake?

O dia passou arrastado. Ligações, relatórios... O relógio atrasava dois minutos para cada um que andava. 18:00h!

Voltei pro carro. Dei a partida e senti alguém batendo no vidro.

- DONA, ABRE A PORTA DO PASSAGEIRO. NÃO GRITA SE NÃO EU TE MATO!

Desnorteei, senti meus pés tremendo, e até pensei em rezar. Tudo passa muito rápido nessa hora.

- Vai Dona! Vai!

- Ok!

Foi a única coisa que eu falei. Queria parecer forte, mas chorava. Ele entrou no carro, bateu a porta e colocou o revólver na minha cara.

- Vamo dá um passeio! Cê vai fazer caminho que eu ti falá. Si buziná pra pulicia eu te mato, si dé algum sinal eu ti mato, si você passá num farol vermelho eu ti mato. E pára de chorá que eu num to afim de vê vagabunda chorando.

Minha mão sacolejava no volante. Ele colocou a mão sobre o banco e gritou para eu dirigir.

A rua onde eu parava o carro ficava duas travessas da rua da minha empresa. Era sempre escuro, mas eu não pagava estacionamento. Meu marido ainda falava:

- Por que você não pára no estacionamento? É mais seguro?

- Pagar 12 reais por dia? Isso, sim, é um assalto. - E eu retrucava.

Eu ficava lembrando disso, enquanto o filho da puta do meu lado ficava balbuciando.

- Eu tenho qui chegá na quebrada, tia! Vai logo! Si eu não chegá eu morro, mais você morre comigo.

Nesse momento ele deslizou a arma no meu cabelo e foi até o decote da minha blusa.

- Quero só vê a cara do Macaba, quando ele vê qui você tá no carro. Acho qui ele vai querer me pagá um extra, faz tempo que ele num vê muié. A dona é bunita, sabia?

Entrei em pânico, e troquei o pé. Acelerei mais do que freei. Um ônibus cruzava a minha frente quando o acelerador estava no máximo. Ao meu lado eu via um rosto de terror, de alguém que podia ver um filme diante dos seus olhos.

Lembro das sirenes, lembro das viaturas, e lembro também do bandido estar sem cinto de segurança quando eu bati no ônibus.

Fiquei em coma, por um dia. Politraumatismo. Quando acordei, a primeira coisa que lembrei foi do risoto. O olhar ficou perdido por algum tempo, por alguns dias, e hoje respirei fundo!