terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Fios da Cidade


Foto: Ronaldo Júnior

A cidade cruza-se, descruza-se, emaranha-se, veste seu brilho negro de embaraço. São caminhos, rotas, meios, fugas, soluções do caos, da ausência de solução, da ausência do poder, da ausência de ordem, da vigência da não-vigilância, do acaso, da sorte alheia, do descaso.

A cidade é seu emaranhado próprio, sua própria lei, sua própria solução. Dissolve-se no improviso de seus cidadãos, de suas necessidades urgentes, na busca auto-indulgente de meios pelos meios tortos. É torta na sua essência a cidade, constrói-se diariamente no descontrole, no crescimento, na fuga necessária de uma ordem sem progresso (falsa) e de um progresso sem ordem (inútil), na urgência de um fio condutor entre a realidade ideal e a realidade real.

A cidade é um cruzamento de fios orgânicos, de vidas em correntes e colisões, em gambiarras sociais, em esdrúxulas combinações. A cidade é um fluxo corrente ininterrupto rumo ao desconhecido, rumo ao possível colapso, a um possível, esperado e inevitável curto-circuito. A cidade é um poço inflamável, a espera de uma só faísca.

Sob o Sol

Foto: Rogério de Moraes

Sob o sol, logo procurou a sobra da árvore para se esconder. Aquele calor fazia a pele suar e isso a incomodava. Já esperara sua carona centenas de vezes naquele local, mas nunca notou como eram confortáveis aquelas sombras. Ficou ali prestando atenção no vento e na vida. Sentou no meio fio e relaxou.

Lembrou de um tempo em que ela ainda sorria e deixava as pequenas coisa da vida lhe tocar. Lembrou de uma amiga de sua falecida mãe que dizia:

- Seja sempre essa criança que você é.

Um estalo lhe veio à mente. Caindo em si, notou que o bom da vida está exatamente em ressalvar coisas tão corriqueiras que os olhos ligeiros do dia-a-dia impedem de ver, olhos que percorrem o fim do caminho sem notar o meio, e quem dirá, o início, olhos que famintos pela ânsia de ser e estar atropelam o bom senso e marginalizam a vida de tal forma que nada mais pode ser feito, além de esperar por seu fim.

Gemeu baixinho, um choro frouxo, pois se dera conta que estava levando seu rebento para o mesmo caminho. O filho, ainda novo, já era só atribuições e não tinha tempo de buscar dentro dele o verdadeiro eu.

Aquilo que ela mais amava se tornara um soldado do tempo, sem pensar por si, simplesmente acompanhando aquilo que a vida lhe trazia e lhe tirava.

Quem determina minha vida é o tempo? Perguntou-se inúmeras vezes até que chegou a conclusão mais acertada de sua vida. Manter-se ali, embaixo daquela árvore e ouvir o vento soprar. Nada além disso.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Depois da Chuva

Foto: Ronaldo Júnior

Caminhava triste depois da chuva quando aconteceu. Vinha por algumas quadras, cabisbaixo, ruminando suas aflições vazias e suas dores brandas. Pisava indiferente nas poças d’água, ouvindo o chapinhar melancólico de sua caminhada solitária, enquanto a tarde caía por trás de seus sonhos. Seguia sem rumo certo, como que procurando se perder, mas também com o medo de se encontrar. Quando deu por si, tinha chego à rua velha da estação e não sabia como fora dar ali. Foi então que o tempo parou.

Como que por encanto, num jogo de espelhos intrínsecos, céu e chão tornaram-se um só. E como que um portal mágico para o infinito das horas, o relógio da torre, que alto no céu sempre esteve, estava agora no chão aberto e seus ponteiros eram mudos. Parado ante uma imagem do impossível, percebeu que todos ao redor também pararam. Tudo era estanque. O ar, as pessoas, a luz, o céu, o relógio e o tempo. Nada se movia. Nem mesmo ele, que a tudo via com assombrada nitidez, mas que nada podia fazer para mudar o curso imóvel das coisas. Chegou a pensar que tivesse morrido e aquilo era a morte, uma infinita exatidão de cores e imobilidade absoluta, para o além das eras, onde o tempo não existia. Não sentiu-se triste, então. Pela primeira vez em muitos anos, talvez pela primeira vez em sua vida, sentiu-se em paz. E quis que aquilo durasse mais que o tempo que já não durava, uma vez que o tempo não mais existia.

Contudo, o tempo é atroz e tinhoso, e acima de tudo inaprisionável. E consoante a vontade de que ele fosse eterno na sua imobilidade, ele era por natureza eterno em seu movimento. Percebeu, um pouco antes do fim de sua paz e de sua viagem no instante, que de fato nada nunca estivera parado. Nem o tempo, nem o relógio, nem a vida. Viu-se amargo na certeza de que vivera um breve retrocesso em si mesmo, e percebeu que dali nada mais seria diferente, ou igual. Sentiu-se por fim aliviado, quando se deu conta de que a tristeza e a solidão eram seu meio e seu fim, a razão e o objeto de sua consciência. Seu eu mais profundo, e também inaprisionável.

Até que o encanto se quebrou, o tempo se moveu e o relógio assomou suas horas. E ele seguiu seu rumo incerto, com sua bela tristeza e deliciosa solidão.

sábado, 29 de novembro de 2008

Na vida não são só flores

Foto: Rogério de Moraes

Rosa em verso? Uma ova! Em prosa. De pétalas e espinhos, colorida, essa é a vida. Em uma cidade você pode acompanhar um homem, seu nome é Paulo, que passa a sua existência procurando o seu contentamento e colhe apenas relva, daninha e que consome quase todo o campo.

Esse Paulo constrói prédios, constrói avenidas para que outros Paulos, Bernardos e Andrés passem por elas. O progresso deve continuar! O progresso traz com ele o regresso, pois nem sempre o Paulo consegue pôr comida em casa. Outros homens como Paulo fazem o mesmo que ele e pelo mesmo preço, às vezes menos.

Maldito capitalismo desumano!

Tornando o mundo uma gangorra, onde para Paulo se manter por cima tem que jogar alguém para baixo ou esperar que o outro morra.

E não passa de um jogo, manipulado por aqueles que contratam os serviços daqueles que contratam os serviços de Paulo. E contam com a miséria de muitos que se amontoam em conjuntos habitacionais, subúrbios e favelas. Vivem do sofrimento de vários e carregam consigo o poder de decidir a vida de todos.

Paulo acordou e viu sua relva e todo o campo enlameado, ajoelhou e pediu a Deus que houvesse uma esperança, e lá onde seus joelhos encostaram nasceu uma flor. Naquele mesmo dia começara a trabalhar, agora registrado. Os pães voltaram à mesa e agora onde havia um lugar para gelar a água existe comida e dignidade.

Entre essas paredes existe um Paulo, nessa rua existem muitos Paulos, naquele Cingapura, então, são centenas, nessa cidade, milhões. São muitos Paulos, isso é São Paulo

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Por Trás do Altar


Foto: Ronaldo Júnior

Religiosamente, dia após dia, Santiago Sancho ajoelhava-se diante da virgem por trás do altar. Trazia nos olhos o mesmo perdão que pedia, na alma as mesmas chagas de que fugia, mas no corpo tão somente o viço da mocidade e as aflições de seu tempo-menino. Contava 19 anos e renitente buscava na casa do Senhor e na virgem do altar a remissão de seus muitos pecados. Pecados que não conhecia, mas os tinha, acreditava, apenas por existir. Assim lhe dizia a mãe, tirânica, que lhe ensinara as contas que rezava e que todos os dias lhe apontava o dedo acusador e condenatório. Reza tuas aves-marias e teus pais-nossos ou mais te castigará o Senhor, pois sois a vergonha de nossa casa, pois sois o filho danado, o acometido, o convulso, o que traz no bojo a baba derramada do demo. Assim então rezava Santiago, buscando humilde a paga por seus pecados, querendo livre-se de todo mal, perdoando a todos que lhes tem ofendido, pedindo o pão de cada dia, se desculpando por não ser santo o fruto do ventre de sua mãe. Não se cabia em si de culpa, Santiago, que na vertigem de suas rezas não se atrevia de vergonha e mal erguia cabeça para ver a santa, indigno que era. Nos olhos amargurados de culpa, muitas vezes as lágrimas que caiam secava-lhe a boca e faziam de seu murmúrio de ladainha uma aridez sem fim. A aridez da culpa e da vergonha. Até que morreu Santiago e com a morte cessaram as convulsões, as babas derramadas, a danação que do demo lhe atribuíam o pecado infindável. Morreu sem saber que não era possesso, que não era danado, que só era epilético. Morreu de desgosto, de corrosão. Morreu da erosão de sua alma estreita de culpa e pecado. Morreu por 200 séculos de tirania, maldade, superstição e hipocrisia. Morreu por ser santo, para muito tarde descobrir que ser santo de nada lhe servira. Morreu na ignorância de que a culpa é o pecado e o pecado é a culpa. Morreu sem saber que quando ia à casa do Senhor, o Senhor já não estava mais lá; que a virgem para a qual não olhava, tampouco olhava para ele.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

A Mão do Homem


Foto: Ronaldo Júnior

Como a ponta de um destino, cravado de desatino, aponto-te o dedo e inquiro: quem és? Tu que do plácido semblante desfilas ao dia e te escondes à noite, mormente observa tua prole sem nome e da fúria desperta intempérico e insone. Com pompa e ousadia te aponto um desafio, da desordem que ordenas, quem que digas do teu nome e tua morada infinita, a razão disso tudo, que propósito habita, o final desta dita... vida, vida desdita. Mais ainda te digo, com meu dedo estendido, que não calo nem temo tua ira incendida, pois já tarde me leva desta árida quimera a que chamam de vida. Porém não parto sem antes, de riste em tua fronte, te dizer que minhas lágrimas, são mais do que ontem. Mas tua face aborrecida não me dá mais que o nada, e o silencio de tua dita é o que calca minha estrada. Pois assim eu prossigo já sem o dedo apontar, que o saiba quem o guarde eu já não posso guardar.